Educação e Sociedade em Rede

Autenticidade em Crise: Reflexões sobre Simulacro, Transparência e Confiança no Mundo Pós-Digital

Introdução

A atividade 3 da unidade curricular Educação e Sociedade em Rede convidou-nos a um exercício intelectual particularmente desafiante: pensar a autenticidade e a transparência nas relações humanas à luz da transformação tecnológica digital. Partindo do exemplo do projeto Dalí Lives, uma instalação interativa do Museu Dalí em Saint Petersburg, Florida, que recorre à tecnologia deep fake para “ressuscitar” o artista (The Dalí Museum, 2019a; 2019b), a atividade dividiu-se em três momentos complementares: a simulação argumentativa em equipa, a participação no debate geral moderado pelo docente e, finalmente, a reflexão individual que aqui apresento.

Este post constitui, assim, uma síntese crítica do percurso realizado, procurando articular as leituras teóricas de Jean Baudrillard e Paul Virilio com as questões concretas que emergiram ao longo das discussões. Que significa ser autêntico num ambiente saturado de imagens, representações e velocidade? Como se pode construir confiança quando os próprios critérios de verificação se tornaram instáveis? E, sobretudo, que desafios pedagógicos se colocam a quem, como nós, procura pensar a educação em rede de forma crítica e fundamentada?


O Simulacro de Dalí: Quando a Cópia se Torna Mais Real que o Real

O exemplo do Dalí Lives funciona como uma porta de entrada privilegiada para estas questões. Ao transformar arquivos históricos, entrevistas e imagens do pintor num avatar digital capaz de interagir com os visitantes em tempo real, o museu não se limita a homenagear a memória de Salvador Dalí. Cria, antes, aquilo a que Jean Baudrillard chamaria um simulacro: uma representação que já não remete claramente para um original estável, mas que passa a valer por si mesma, num regime de hiper-realidade (Baudrillard, 2001). Neste contexto, a pergunta “é verdadeiro ou falso?” perde parte da sua relevância.

O Dalí digital não substitui o Dalí histórico; oferece uma versão editada, sempre disponível, performativamente ajustada ao que se espera de um “grande artista excêntrico”. Paradoxalmente, esta versão pode ser vivida pelos visitantes como mais “Dalí” do que o próprio Dalí alguma vez foi no quotidiano. O museu criou algo que o original nunca foi completamente: um intérprete infatigável de si mesmo, pronto para responder e dialogar, desprovido das contradições, cansaços ou indiferenças que caracterizam qualquer ser humano real.

Esta dissolução da fronteira entre original e cópia não é um efeito colateral da tecnologia, mas uma característica estrutural do mundo pós-digital. Como Baudrillard argumenta, vivemos numa época em que os signos se emanciparam das suas referências materiais, circulando de forma autónoma e gerando uma realidade que já não depende de validação externa (Baudrillard, 2001). O problema não é, pois, que o deep fake seja uma “mentira”; é que ele pertence a um regime de significação onde a própria distinção entre verdade e mentira se tornou operacionalmente secundária. O que importa é o efeito, a circulação, a capacidade de gerar experiência imediata.

Esta mutação simbólica tem consequências profundas para a construção de identidades, relações sociais e, evidentemente, para a pedagogia. Se o conceito de autenticidade se dissolve quando tudo pode ser recriado digitalmente, que critérios de validação podemos ainda usar? Em que medida a nossa própria presença em ambientes educativos online é, ela própria, uma simulação?


Velocidade, Saturação e o Colapso do Tempo para a Reflexão

Se Baudrillard nos ajuda a pensar o problema da representação, Paul Virilio desloca o foco para a dimensão temporal. Para Virilio, o traço distintivo da modernidade tardia não é apenas a proliferação de imagens, mas a compressão radical do tempo e do espaço operada pela velocidade das tecnologias digitais (Virilio, 1993). A informação circula à velocidade da luz, reduzindo drasticamente o intervalo entre estímulo e resposta, entre produção e consumo de conteúdos.

Esta aceleração tem um nome técnico: dromologia, o estudo da velocidade enquanto variável política e cultural (Virilio, 1993). E ela traz consigo um perigo estrutural: o acidente integral, ou seja, a possibilidade de que o colapso não seja localizado, mas sistémico, afetando simultaneamente redes, mercados, instituições e subjetividades. Não estamos perante problemas isolados e facilmente contornáveis; estamos perante falhas estruturais que atravessam toda a arquitetura do digital.

No contexto do debate sobre autenticidade e transparência, a dromologia viriliana permite-nos compreender por que razão a simples disponibilização de “mais informação” não garante maior clareza ou confiança. Pelo contrário: a saturação de estímulos, notificações, imagens e perfis cria uma espécie de opacidade por excesso. A confiança, no sentido tradicional, exige tempo, memória partilhada e possibilidade de verificação mútua. Mas num ambiente onde tudo acontece em tempo real, o espaço para a dúvida metódica, para a contextualização e para o juízo ponderado encolhe dramaticamente.

A consequência não é maior transparência, mas, pelo contrário, maior fragilidade dos vínculos sociais. Estamos “conectados” a mais pessoas, temos acesso a mais informação, mas o tempo disponível para conhecer, compreender e confiar é cada vez menor. É como se a velocidade tivesse criado uma nova forma de isolamento: um isolamento dentro da multidão, uma solidão mediada pelo dispositivo.


Transparência como Obscenidade: O Paradoxo da Exposição Total

Um dos pontos mais intrigantes do exercício foi a discussão em torno do conceito de transparência. Habitualmente, a transparência é apresentada como um valor positivo: mais acesso à informação, mais rastreabilidade, mais visibilidade dos processos. Democracia, está implícito, requer transparência. A tecnologia promete-nos precisamente isto: a possibilidade de “ver tudo”.

No entanto, tanto Baudrillard como a reflexão coletiva no debate chamaram a atenção para o seu lado paradoxal. Num mundo onde tudo pode ser exposto, registado e monitorizado, já não há distância, segredo ou zonas de opacidade onde a subjetividade se possa constituir em profundidade. Baudrillard designa esta condição como “obscenidade do transparente”: um regime de hipervisibilidade que, paradoxalmente, esvazia o sentido (Baudrillard, 2001).

Pense-se nas redes sociais: somos constantemente empurrados para a produção de uma persona permanentemente disponível ao olhar dos outros, ajustada às métricas de desempenho social (gostos, partilhas, comentários). Não se trata, na maioria dos casos, de “mentir” de forma consciente, mas de performar uma versão de nós mesmos que o ambiente digital recompensa. A autenticidade torna-se, assim, ela própria um efeito de simulação: aquilo que “parece autêntico” numa rede social pode ser o resultado de cálculo, curadoria e edição constante.

Esta pressão para a performance contínua levanta questões profundas sobre a identidade. O que significa ser “eu” quando a minha imagem circula digitalmente, editada, fragmentada em múltiplas plataformas? Que profundidade de conhecimento de si mesmo é ainda possível quando nos reconhecemos apenas através do reflexo digital? A transparência, longe de resolver estes dilemas, parece agravá-los ao tornar a performance inevitável.


Desigualdade Digital: Autenticidade como Privilégio

Uma questão crucial que emerge do debate refere-se às assimetrias de literacia digital. Nem todos dispõem do mesmo capital cultural, linguístico ou tecnológico para “jogar este jogo” da presença em rede. Há estudantes, profissionais, cidadãos que não conseguem reconhecer vieses algorítmicos, que não compreendem plenamente como os seus dados são usados, que não têm à sua disposição as ferramentas para editar e curar a sua presença online de forma estratégica.

Se a autenticidade passa a depender da capacidade de gerir conscientemente o simulacro, corre-se o risco de converter a “autenticidade ética” num privilégio de classe, acessível apenas a quem domina as regras invisíveis das plataformas. Esta observação parece particularmente relevante para quem pensa a educação em contextos de inclusão digital, onde as assimetrias de literacia podem reforçar, em vez de mitigar, desigualdades preexistentes.

A questão pedagógica torna-se, portanto, urgente: como promover uma literacia crítica que não se converta ela própria em novo fator de exclusão? Como ensinar a desmontar o simulacro sem pressupor que todos têm o mesmo ponto de partida, os mesmos recursos, a mesma disposição temporal para estudar estas questões?


Implicações Pedagógicas: Literacia Crítica e Ecologia da Velocidade

O que resulta deste percurso de leitura e debate para quem se dedica à pedagogia do e-learning? Em primeiro lugar, parece claro que não basta ensinar ferramentas ou competências técnicas. É preciso trabalhar uma literacia crítica que ajude os estudantes a desmontar as condições de produção daquilo que aparece como “verdadeiro” e “transparente” no digital.

Isto implica, concretamente:

  • Discutir abertamente os vieses algorítmicos e a forma como as plataformas condicionam o que se torna visível;
  • Questionar as lógicas de curadoria e de recomendação que guiam a nossa experiência online;
  • Compreender os efeitos da aceleração na capacidade de juízo crítico e de reflexão ponderada;
  • Reconhecer os jogos de poder que atravessam a construção de reputação e visibilidade em rede;
  • Aprender a verificar informação num contexto de saturação e velocidade.

Em segundo lugar, a perspetiva de Virilio convida-nos a pensar numa ecologia da velocidade: a criação deliberada de tempos mais lentos, espaços de pausa onde a reflexão possa acontecer sem a pressão da reação imediata (Virilio, 1993). Fóruns assíncronos, prazos de entrega ajustados, feedback construtivo que privilegia a qualidade sobre a quantidade, momentos explícitos de síntese — todas estas são práticas pedagógicas que, de algum modo, “regulam a velocidade” e devolvem aos estudantes algum controlo sobre o seu tempo de aprendizagem.

Não se trata de rejeitar a tecnologia, mas de a usar de forma deliberadamente lenta, consciente, pedagogicamente informada.


Uma Ética Situada: Autenticidade Contextualizada

Em terceiro lugar, parece importante que, enquanto educadores em rede, nos interroguemos constantemente sobre as nossas próprias práticas de autenticidade e transparência. Até que ponto explicitamos critérios de avaliação? De que forma tornamos visíveis os nossos processos de decisão? Como equilibramos a necessidade de estarmos presentes online sem cair numa exposição excessiva ou performativa?

Estas perguntas não têm respostas definitivas, mas merecem ser colocadas e revisitadas como parte de uma ética da autenticidade que não se limita a declarar valores no papel, mas que procura experimentá-los, testá-los e ajustá-los ao longo do tempo.

Uma ética situada, portanto: que reconheça os constrangimentos do ambiente digital sem cair no fatalismo; que procure ser coerente sem exigir transparência total; que construa confiança através de consistência, contextualidade e reconhecimento mútuo.



Conclusão: Reconfigurar, Não Recuperar

O desafio central talvez não seja recuperar uma “autenticidade perdida”, a que Benjamin chamava “aura”, aquela unicidade e irrepetibilidade que caracterizava a experiência artística antes da reprodução mecânica (e agora digital). Antes, trata-se de aprender a reconfigurar o que significa ser autêntico à luz das condições atuais.

Isto exige aceitar que a mediação digital, longe de ser um obstáculo à “verdadeira” relação humana, é hoje uma dimensão constitutiva da nossa existência social. O Dalí deep fake não nos rouba o Dalí real; obriga-nos a perguntar de novo: o que é, afinal, a “realidade” de um artista cuja obra sempre foi profundamente performática e autoconsciente? Não seria o avatar digital apenas a radicalização de uma lógica que já estava presente na obra e na vida do pintor?

Nesta linha, a autenticidade no mundo pós-digital não será uma propriedade estável do sujeito, mas antes uma prática relacional e contextualizada: a capacidade de sustentar coerência ética num ambiente híbrido, acelerado e saturado de representações. E a transparência não será a exposição total, mas a explicitação suficiente dos critérios, limites e contextos que permitem confiar criticamente.

É nesta tensão produtiva entre simulacro e presença, entre velocidade e pausa, entre exposição e privacidade, que me parece residir o espaço possível para uma pedagogia do e-learning que seja, ao mesmo tempo, tecnologicamente informada e humanamente responsável. Uma pedagogia que não promete soluções, mas que oferece ferramentas para pensar melhor os dilemas que enfrentamos.


Referências

Baudrillard, J. (2001). Simulacros e simulação (2.ª ed.). Relógio d’Água.

The Dalí Museum. (2019a, abril 26). Dalí Lives – Art Meets Artificial Intelligence [Vídeo]. YouTube. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mPtcU9VmIIE

The Dalí Museum. (2019b, maio 8). Behind the Scenes: Dalí Lives [Vídeo]. YouTube. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BIDaxl4xqJ4

Virilio, P. (1993). A inércia polar. Publicações Dom Quixote.

Publicado por Raquel Santos

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