A Nova Arca de Noé Somos Nós: A Responsabilidade Individual no Dilúvio Digital

Introdução
Vivemos tempos de cheia. Não de águas pluviais, mas de dados. Como Pierre Lévy nos alerta na sua obra seminal Cibercultura, enfrentamos um “segundo dilúvio”: o dilúvio informativo. A metáfora bíblica não é inocente; ela convoca-nos a pensar na sobrevivência e na preservação. Mas se no Génesis a salvação dependia de uma única embarcação de madeira e de um patriarca eleito, na era digital, a arquitetura da salvação é radicalmente distinta.
Ao assistir à reflexão de Lévy sobre “O que é o Virtual?”, compreendemos que o virtual não é o oposto de real, mas sim a dimensão da significação humana: a nossa capacidade de dar sentido ao mundo. É precisamente essa capacidade que está em jogo.
A Arca Individual
Respondendo à questão central desta atividade: sim, a responsabilidade individual é a nova Arca de Noé. Lévy é perentório na introdução da sua obra: “Noé é cada um de nós”. No ciberespaço, não existe um capitão central nem uma lista pré-definida de espécies a salvar. O dilúvio é permanente (“a arca nunca repousará sobre o monte Ararat” ), e o fundo sólido desapareceu.
Neste cenário, a filtragem preservadora do nosso património cultural recai sobre a liberdade individual. Somos nós, enquanto cidadãos digitais, que construímos as nossas pequenas “arcas”: as nossas seleções pessoais de links, os nossos favoritos, os nossos feeds. A “filtragem preservadora” não é um ato de censura imposto por um grupo, mas um ato de curadoria individual.
A Cibercultura e a Prática do Sentido
Lévy define a cibercultura como o conjunto de técnicas, práticas, atitudes e valores que se desenvolvem com o ciberespaço. Para ilustrar esta noção, destaco três exemplos significativos retirados da obra que demonstram como esta cultura opera na prática:
- A Navegação por “Caça” (O Caso Olaf Mansis): Lévy relata a busca por um amigo perdido, Olaf Mansis. Através de motores de busca, leilões online e trocas de e-mail com desconhecidos (uma tal Margaret Mansis), ele reconstrói uma ligação humana perdida. Este exemplo ilustra a cibercultura não como isolamento, mas como um universal por contacto, onde a tecnologia serve para reatar o tecido social real.
- A Navegação por “Saque” (A Deriva Dadaísta): Em contraste com a busca focada, Lévy descreve uma sessão de navegação que começa num site de música (Virgin) e, por associação livre de hiperlinks, o leva a um museu imaginário Dadaísta e a instalações de arte Fluxus. Aqui, a cibercultura revela-se como uma biblioteca de Babel infinita, onde a responsabilidade do utilizador é “surfar” o caos para construir o seu próprio percurso de conhecimento.
- As Comunidades Virtuais (O Caso Wesson): Lévy descreve uma discussão numa mailing list de artes onde um utilizador (Wesson) é criticado por confundir um povo com o seu governo. Este exemplo é vital pois mostra que a “arca” não navega sozinha. As nossas arcas individuais “dançam em acordo”. A responsabilidade individual exerce-se em tensão e diálogo com a comunidade, criando uma inteligência coletiva que se autorregula sem autoridade central.
Conclusão
Portanto, a “filtragem” do património humano não será feita por uma elite tecnocrática (responsabilidade grupal fechada), mas pela soma das responsabilidades individuais interligadas. Cada um de nós, ao escolher o que lê, o que partilha e o que comenta, está a decidir o que sobrevive ao dilúvio. A nossa liberdade é o nosso leme.
Referências
Lévy, P. (2000). Cibercultura (C. I. da Costa, Trad.; 2.ª ed.). Instituto Piaget. (Obra original publicada em 1997)
Fronteiras do Pensamento. (2013, 28 de maio). Pierre Lévy: O que é o virtual? [Vídeo]. YouTube. https://youtu.be/sMyokl6YJ5U


